A educação dos cinco sentidos

30 dezembro 2006

Vozes da Sicilia e a voz da pós-modernidade


Berio: Voci
Kim Kashkashian (viola), Robyn Schulkowsky (percussão), RSO Viena, Dennis Russell Davies



Uma das grandes tendências da música do século XX é o jogo de influências entre o folclore e as construções musicais inovadoras. Para compositores como Bártok, o folclore é a base de inspiração em busca de harmonias não-tonais, e livres de peso da tradição tonal. Neste disco, Berio faz um uso extremamente inteligente do folclore siciliano, incorporando-o em duas composições ("Voci" e "Naturale") que apontam para uma música transcendente, sem compromissos outros que não seu próprio desenvolvimento.

Em sua carreira, Berio mostrou-se um mestre da voz num contexto inovoador, como em "Coro", "Sinfonia", "Circles", e na maravilhosa "Sequenza para voz solo". Nestas obras, as vozes são partes do discurso musical, por vezes na expressão coral tradicional (como em "Coro"), e também usando a desconstrução, como na Sequenza. Em "Voci", Berio vai um passo além. Usando temas sicilianos (também apresentados no CD, o que é muito importante para o ouvinte), Berio retransforma-os num concerto para viola. Colocada em grande destaque com relação à orquestra, a viola retrabalha os temas populares, e coloca em oposição à massa orquestral. A oposição solista-orquestra (tão cara à Beethoven) aqui adquire tamb'rm uma dimensão política. O indivíduo (povo) resiste à massificação. Diria um italiano, "muitos já tentaram conquistar a Sicília, que venceu todos os invasores".

A contraposição entre viola, voz popular, e acompanhamento é fascinante. Os cantos populares sicilianos que inspiraram Berio transmitem uma força vital. A escolha da viola como solista é precisa. Seu tom transmite a força do povo somada à tradição intelectual moderna. É como se Berio dissesse: não basta valorizar a tradição e a vontade populares, é preciso usar o conhecimento para expressar essa tradição de forma universal e inovadora.