A educação dos cinco sentidos

16 outubro 2005

Xenakis: Pode a música estocástica soar agradável aos ouvidos?

Xenakis: Pleiades, com Percussões de Estrasburgo (Harmonia Mundi)

A música de Iannis Xenakis é única. Com uma formação básica em matemática, ele desenvolveu teorias sobre como aplicar métodos estocásticos na composição musical. Pléïades é uma composição para instrumentos de percussão onde Xenakis aplicou suas teorias com resultados supreendentes. Ele descreve a peça: "A única fonte para esta composição poliritmica é a idéia de periodicidade, repetição, duplicação, em cópias fiéis, pseudo-fiéis, infiéis...". A concepção de Xenakis é inusitada, mas "Pleiades" é uma peça maravilhosa que pode ser apreciada mesmo sem a percepção consciente das "nuvens, nebulosas e galáxias de batidas fragmentadas organizadas pelo ritmo (Xenakis)".

Consciente da demanda em seus ouvintes, Xenakis arquitetou a peça em quatro partes: Metaux (for metais), Claviers (percussões de teclado), Peaux (tambores) e Melanges (misture). Cada parte engendra seu próprio mundo sonoro, mais orientado a timbres que a pulsos. Em Metaux, o timbre de cada instrumento é diferenciado por diferentes ritmos. Em Claviers, os instrumentos de teclado produzem sons líricos em ondas. Em Peaux, os tambores sustentam ritmos inusitados, bem diferentes de pulsações fixas típicas de tambores africanos. Mélanges, a parte final, mistura todos estes sons numa cornucópia sonora. Xenakis segue cada batida ritmica por uma batida ligeiramente diferente em duração e timbre. Isto cria uma impressão mais próxima de uma fuga para seis percussões do que uma versão européia de tambores africanos. As mudanças constantes de timbre acontecem de forma controlada, dada a concepção de "clusters de sons". A peça é ao mesmo tempo desafiadora e agradável ao ouvido, e ouvir "Pleiades" é descobrir novos horizontes musicais.

15 outubro 2005

O universo etéreo dos quartetos de Bartók

Bartók: Quartetos de Cordas, Quarteto Takács (Decca)

Das formas tradicionais da música clássica, o quarteto de cordas é a única que permanece um desafio para os compositores. Enquanto sinfonias e concertos hoje tem poucos adeptos nos compositores contemporâneos, escrever um quarteto de cordas continua a ser um desafio para autores como Boulez, Carter, Dutilleux, Ligeti, Rihm, Scelsi, e Xenakis. Para que o quarteto continue a ser um genêro tão praticado no século XXI quanto o foi no século XIX, a contribuição-chave sem dúvida foi a de Béla Bartók. Seus quartetos de cordas representam uma completa renovação. Bartók construiu um universo totalmente particular, capaz de levar a mente do ouvinte para passeios interestelares.

Ouçam o quarteto no. 5. O segundo movimento ("Adagio molto") é uma música lunar, descarnada, etérea. Uma introdução em que o cello sustenta uma viagem feita pelos violinos. Quando menos se espera, estamos flutuando numa outra dimensão, levados por sons inesperados. O violino leva a tensão quase insustentável (como na "Grande Fuga" de Beethoven). A resposta do cello e da viola é uma corda que nos traz de volta à Terra. Como Bartók consegue isto? O segredo de todo grande artista é permitir diferentes interpretações, mas há a visão predominante é que a apropriação da música folclórica da Europa Central permitiu a Bartók libertar-se das harmonias tradicionais da música bem-comportada, mas manter seus quartetos no limiar da compreensão por mortais comuns. O quarteto no. 5 tem cinco movimentos simétricos (allegro-adagio-scherzo-andante-allegro) onde a inspiração folclórica é mais evidente no movimento central ("Scherzo alla bulgarese") e no quinto movimento. Após momentos de extrema tensão, o último movimento é quase um rondó clássico onde às vezes recuperamos um pouco da estética de Beethoven (op. 131). Embora Bartók não deixe de produzir sons inovadores, a introdução de um tema folclórico no meio do movimento representa uma pausa necessária para o ouvinte depois de tanta tensão. O efeito final é de uma viagem por luas inexploradas, que nos traz de volta à Terra e nos deixa desconcertados de tanta criatividade.

A interpretação do quarteto Takács, das que conheço (Emerson, Vegh, Linsday, Budapest) é de longe a melhor. Ela mantém o caráter cigano de Bartók, com as ênfases nas horas certas e uma articulação impecável. É preciso estar inteiramente disponível para esta música. Para mim, a melhor experiência foi ouvi-la no meio de uma trilha em Campos do Jordão, depois de jogar muita endofina no cérebro em uma longa subida.

11 outubro 2005

A atualidade de Mahler

A Canção da Terra, Ludwig/Wunderlich/Klemperer (EMI)
A Canção da Terra, Ferrier/Patzak/Walter (Decca)

Porque será que, em nosso século XXI tão desencarnado, a música de Gustav Mahler parece cada vez mais atual? Já se disse que a depressão é a doença deste século. O deprimido (como eu) é simplesmente alguém que parou de ter grandes ilusões. Ao ouvir Beethoven ou Mozart, somos levados a um estado de alegria incontida que momentaneamente nos faz crer num mundo ideal. Ao ouvir Boulez ou Nono, ainda continuamos pensando na música do futuro. Mas ao ouvir Mahler, não há como não enfrentar a si mesmo. Principalmente em sua fase final, com as sinfonias 6a., 7a., e 9a., Malher nos obriga a refletir. Não parece haver escape da realidade. Somos levados ao ponto zero, de onde teremos de sair sozinhos. Não há como ficar indiferente.

E o que dizer desta "Canção da Terra"? Canto de despedida que confia na força renovadora da humanidade. Após o "Erwig..." (eternamente) final, percebemos como Mahler é atual. Ao fazer de um tremendo desespero pessoal uma mensagem de renovação, Mahler desnuda o ouvinte, e o faz mais consciente ainda que cada um de nós pode, à sua maneira, escapar da depressão do cotidiano. A consciência do efêmero é a única forma de sobreviver no século 21 e manter a sanidade.

As duas gravações de referência (Walter e Klemperer) são de deixar qualquer mortal aliviado de tanta dor. Não há sentido falar em "melhor" neste caso. A cada dia, uma delas é mais adequada. Hoje, foi estonteante ouvir Christa Ludwig na leitura de Klemperer. Quem sabe outro dia não conseguirei nem passar da primeira música (o que ja me aconteceu muito). Mas é por isto que Mahler é atual....

09 outubro 2005

Berio: Estranheza e Invenção

Luciano Berio – Sequenzas (completas)

Ensemble Intercontemporain – DG 457 038-02 (3 CDs)

De todas as formas de arte de seu tempo (cinema, teatro, literatura, artes plásticas) certamente a música de hoje é a mais segregada e menos compreendida. Negligenciada e desconhecida do público, a música de concerto contemporânea sobrevive em nichos de mercado, restrita a seguidores fiéis com hábitos de seita. Porquê? Talvez pelo fato das formas musicais serem mais exigentes aos sentidos, e também pela overdose de sons em nosso dia-a-dia. O ouvinte de hoje tem à sua disposição uma variedade inédita na história da humanidade; numa boa loja de discos, pode-se comprar desde Hildegarda de Bingen (século XI) até músicas do Tibete e do Irã. Distante de todas estas correntes, a melhor música contemporânea está encontrando um espaço próprio de inovação, criatividade e diversidade, e compositores como Boulez, Duttilleux, Ligeti, Carter impedem que nosso ouvido se acostume à linguagem bem-comportada dos sons-ambiente. Neste quadro, dos bons discos lançados nos últimos anos, um merece destaque particular: as Sequenzas de Luciano Berio. Quatorze obras para instrumentos solistas (inclusive a voz), que exploram as diferentes possibilidades harmônicas e expressivas de cada instrumento, e buscam o mesmo impossível que Bach almejava em suas suítes para violino e violoncelo solo: uma escuta polifônica, sugerida pela intensa virtuosidade das peças. Esta gravação, lançada em 2000, é um tributo à invenção e à capacidade de criação da música atual, ajudada por excelentes interpretações. Como disse a crítica inglesa: Listen, and be astonished. Depois de ouvi-las, até Mozart tem outro gosto....