A educação dos cinco sentidos

12 janeiro 2007

Resoluções de Ano Novo

Tomei uma resolução de Ano Novo: juntar meus dois blogs (este e meu blog de Ciencia, Tecnologia e Arte). Assim, terei um blog único no qual coloco tudo, tanto a parte de política e história de ciência e tecnologia, quanto questões culturais que me interessam. Como resultado, este blog é um retrato mais fiel do autor.

30 dezembro 2006

Vozes da Sicilia e a voz da pós-modernidade


Berio: Voci
Kim Kashkashian (viola), Robyn Schulkowsky (percussão), RSO Viena, Dennis Russell Davies



Uma das grandes tendências da música do século XX é o jogo de influências entre o folclore e as construções musicais inovadoras. Para compositores como Bártok, o folclore é a base de inspiração em busca de harmonias não-tonais, e livres de peso da tradição tonal. Neste disco, Berio faz um uso extremamente inteligente do folclore siciliano, incorporando-o em duas composições ("Voci" e "Naturale") que apontam para uma música transcendente, sem compromissos outros que não seu próprio desenvolvimento.

Em sua carreira, Berio mostrou-se um mestre da voz num contexto inovoador, como em "Coro", "Sinfonia", "Circles", e na maravilhosa "Sequenza para voz solo". Nestas obras, as vozes são partes do discurso musical, por vezes na expressão coral tradicional (como em "Coro"), e também usando a desconstrução, como na Sequenza. Em "Voci", Berio vai um passo além. Usando temas sicilianos (também apresentados no CD, o que é muito importante para o ouvinte), Berio retransforma-os num concerto para viola. Colocada em grande destaque com relação à orquestra, a viola retrabalha os temas populares, e coloca em oposição à massa orquestral. A oposição solista-orquestra (tão cara à Beethoven) aqui adquire tamb'rm uma dimensão política. O indivíduo (povo) resiste à massificação. Diria um italiano, "muitos já tentaram conquistar a Sicília, que venceu todos os invasores".

A contraposição entre viola, voz popular, e acompanhamento é fascinante. Os cantos populares sicilianos que inspiraram Berio transmitem uma força vital. A escolha da viola como solista é precisa. Seu tom transmite a força do povo somada à tradição intelectual moderna. É como se Berio dissesse: não basta valorizar a tradição e a vontade populares, é preciso usar o conhecimento para expressar essa tradição de forma universal e inovadora.

02 novembro 2006

Um mantra tibetano para quarteto de cordas

Giacinto Scelsi, Quarteto de Cordas no. 4
Quarteto Arditti

A primeira sensação ao ouvir o Quarteto no.4 de Scelsi é a perplexidade. Sons que parecem vir de um instrumento desconhecido, de um mundo diferente, com uma música circular que gera uma tensão contínua. A princípio, esperamos que a tensão seja resolvida como acontece na música tonal. Mas não. A tensão continua. Quando enfim nos acostumamos, ficamos envolvidos pelo som como num mantra tibetano. Aí começamos a perceber as nuances mínimas dos sons, as pequenas variações e as tensões dentro de cada nota.

Não é para menos. Scelsi, um compositor fora das escolas, concebeu esta peça para um instrumento de 16 cordas. Cada corda de cada instrumento do quarteto é notada separadamente, e o uso de scordatura gera sons absolutamente inesperados. O quarteto é uma peça de dificílima execução, como relata o violinista Franco Sciannameo, que foi um dos executores na premiére mundial. O quarteto pede sucessivas audições. Cada vez que ouvimos, aumenta seu poder de transcendência. Uma peça assustadoramente moderna.

13 outubro 2006

Do moderno e do eterno


Beethoven, Quarteto de cordas opus 131
Quarteto Takacs (Decca)



A mãe de todos os quartetos...A influência decisiva sobre Bartok, Boulez e Boucourechliev..Uma música que parece vir de uma dimensão distante das categorias tradicionais de classicismo, romantismo e modernismo. Um quarteto com sete movimentos, sendo o corpo central um movimento de tema e variações de quase 15 minutos. Uma análise mais detalhada mostra o quanto Beethoven inovou. Na realidade, o opus 131 é quase um meta-quarteto. Ao invés de começar com um movimento em forma-sonata, que estabelece o tema principal do quarteto, como fizeram Mozart e Haydn antes dele (e tantos outros depois), Beethoven deixa este movimento para o final. E constrói uma estrutura na qual os temas convergem para o final. Ao invés de um final leve, rápido, como é de praxe em Haydn, Beethoven inverte nossas expectativas. Esta virada genial é um experimento vitorioso de Beethoven. Não é absurdo imaginar que, sem o desafio do quarteto 131, compositores contemporâneos como Luigi Nono e Henri Duttileux não teriam a mesma motivação para escrever excelentes quartetos.

12 outubro 2006

O mestre Zen da música contemporânea

John Cage, "In a Landscape"
Stephen Drury, piano

Cage é talvez o mais incompreendido dos músicos contemporâneos. (In)famoso pela sua (não) música 4'33", Cage nada tem de provocador. Ele tem um rigoroso projeto musical de revolucionar nossa escuta, de nos provocar e de ampliar nossos horizontes sobre o que é música. "In a landscape" é um exemplo de música zen, que não parece ter começo ou fim, que fica circulando em nossa mente, e que nos leva a um estado de contemplação extática. Esta semana, estava voltando de Recife e numa viagem de 3 horas, Cage foi meu companheiro para me tirar do avião e levar-me às nuvens.

17 dezembro 2005

Boulez: O mestre dos martelos

Pierre Boulez: Sur Incises (Ensemble Intercontemporain)

Controverso mas sempre inovador, Pierre Boulez é talvez a figura central da música contemporânea neste início de século. Em sua peça "Le Marteau sans Maitre" nos anos 50, Boulez rompeu com o serialismo e adota uma forma de composição radicalmente nova, onde busca resgatar a herança da polifonia vocal da Renascença. O resultado é incrivelmente agradavel. Não por acaso Boulez sofreu severas críticas de Luigi Nono que o acusou de usar um pensamento sofisticado para seduzir um público que, no entender de Nono, deveria ser desafiado com o canto da revolução.

"Sur Incises", obra de 1998, é uma das melhores expressões musicais do pensamento de Boulez. A obra utiliza três pianos, três harpas e três instrumentos de percurssão. Na prática, os três pianos desenham seis fluxos musicais distintos, que oscilam entre um ritmo alucinante e passagens de grande delicadeza. As harpas e as percussões completam as figuras ritmicas e as texturas da obra. Os tres pianos são usados como instrumentos percussivos, onde os martelattos nos pianos sao ecoados pelas harpas e percussoes.

O uso do piano como um instrumento de percussão tem muitos antecedentes. O mais notavel é Bartok, em sua "Sonata para Dois Pianos e Percussão". A comparacao da sonata de Bartok com Sur Incises mostra que o mesmo elã criativo (os arpeggios dos pianos em contraste às percussões) gera resultados bem diversos. Enquanto Bartok estabelece uma linha continua desde o começo da obra, onde o encadeamento dos eventos está a serviço de uma macroconcepção, Boulez parece se divertir em nos confundir. A cada instante, "Sur Incises" nos traz uma surpresa sonora. Um mesmo motivo motivo musical aparece e desaparece, sem outra lógica que não um encadeamento com a ação anterior.

"Un development intérieur dont le parcours n'est pas prévisible". Este ideal de Boulez é plenamente realizado em Sur Incises, onde o cada som decorre naturalmente do som no instante anterior e é ao mesmo tempo inesperado. "Sur Incises" é o coroamento de uma vida de um inventor radical e uma prova que é possível compor musica inovadora e sedutora ao mesmo tempo. Salut, maitre Boulez!

16 outubro 2005

Xenakis: Pode a música estocástica soar agradável aos ouvidos?

Xenakis: Pleiades, com Percussões de Estrasburgo (Harmonia Mundi)

A música de Iannis Xenakis é única. Com uma formação básica em matemática, ele desenvolveu teorias sobre como aplicar métodos estocásticos na composição musical. Pléïades é uma composição para instrumentos de percussão onde Xenakis aplicou suas teorias com resultados supreendentes. Ele descreve a peça: "A única fonte para esta composição poliritmica é a idéia de periodicidade, repetição, duplicação, em cópias fiéis, pseudo-fiéis, infiéis...". A concepção de Xenakis é inusitada, mas "Pleiades" é uma peça maravilhosa que pode ser apreciada mesmo sem a percepção consciente das "nuvens, nebulosas e galáxias de batidas fragmentadas organizadas pelo ritmo (Xenakis)".

Consciente da demanda em seus ouvintes, Xenakis arquitetou a peça em quatro partes: Metaux (for metais), Claviers (percussões de teclado), Peaux (tambores) e Melanges (misture). Cada parte engendra seu próprio mundo sonoro, mais orientado a timbres que a pulsos. Em Metaux, o timbre de cada instrumento é diferenciado por diferentes ritmos. Em Claviers, os instrumentos de teclado produzem sons líricos em ondas. Em Peaux, os tambores sustentam ritmos inusitados, bem diferentes de pulsações fixas típicas de tambores africanos. Mélanges, a parte final, mistura todos estes sons numa cornucópia sonora. Xenakis segue cada batida ritmica por uma batida ligeiramente diferente em duração e timbre. Isto cria uma impressão mais próxima de uma fuga para seis percussões do que uma versão européia de tambores africanos. As mudanças constantes de timbre acontecem de forma controlada, dada a concepção de "clusters de sons". A peça é ao mesmo tempo desafiadora e agradável ao ouvido, e ouvir "Pleiades" é descobrir novos horizontes musicais.